Flor Ribeirinha vai além da tradição e promove transformação social
Pensar em tradição e ancestralidade em Mato Grosso, hoje, é também sinônimo de Flor Ribeirinha. Que o grupo é tetracampeão mundial de dança folclórica, a maior parte da população já sabe, mas o que é pouco dito, apesar de sua evidente relevância para a sociedade Mato-grossense, é a rede que se estende através da dança junto a preservação da cultura popular. Nesta reportagem especial traremos alguns dos principais motivos que demonstram que o grupo Flor Ribeirinha vai além do folclore, resgate da ancestralidade ou valorização da cultura, mas também enquanto ferramenta de transformação social.
Andar pelo Quintal da Domingas é atravessar a contemporaneidade, como se viajássemos no tempo para uma Cuiabá de trinta anos atrás, quando era comum ver a infância brincar de um lado pro outro, soltar pipa ou bolita no chão de terra, sem nenhuma interferência dos dispositivos tecnológicos ou do tempo. Os frutos são outros, e os mais naturais possíveis, como os sinais que tá chegando manga – com o pé floreando branquinho entre as galhas que sombreiam a varanda. O barulho não para, é bagunça, risada e gritaria, com ou sem ensaio, tem o esbanjar de vida.
Dá pra sentir que a casa é de vó. Se ficar observando, não precisa de esforço pra reconhecer Domingas. A criançada faz fila pra pedir “bença, vó”. Em seguida, ela entra e sai pela portinha da casa, que fica em frente ao imenso espaço reservado para os ensaios no dia a dia. Enquanto isso cata balde, colhe roupa, manda recado pra alguém do outro lado da rua. Sem caracterizações, ela dispensa apresentações ou termos difíceis, de bermuda e havaianas, como qualquer outra avó. Todavia, só existe uma Doutora Honoris Causa como ela: essa que vive o mesmo que preserva, a cuiabania.
Para o diretor artístico Avinner Silva, entre as principais heranças que essa comunidade deixa para posterioridade, é ir além dos títulos conquistados nas competições pelo mundo, mas viver o sentimento de pertencimento e sentir orgulho de ser desta terra. “Passamos por um processo de transição de sentimentos e durante muito tempo, a nossa tradição, como o siriri e o cururu e outras formas de expressão da cultura popular que viviam na marginalização“, comenta.
Avinner reforça que antes, muito do que se sabe era passado só pela oralidade de geração em geração. Hoje, essa mensagem vai além do quintal da ãncia do grupo, Dona Domingas. “Tratamos de contexto cultural, mas também humano, que se entrelaça com as habilidades afetivas, cognitivas, motoras, além do orgulho de ser [daqui], que traz consigo um resultado diferente para uma futura geração“, acrescenta.
Do preconceito para a transformação social
A história do Brasil, em especial a de Mato Grosso – coração da América Latina, enfrentou vários desafios. As raízes ribeirinhas tem fortes laços com os povos originários (indígenas), além dos quilombolas (africanos), como também dos colonizadores europeus. Há ainda muito que se debater sobre o resgate da ancestralidade e o combate ao preconceito, como por exemplo, o que sofre o linguajar cuiabano, como o de pessoas que vivem nas comunidades tradicionais. Todavia, o que já foi tratado como “feio” ou “errado”, hoje também tem reconhecido, com muita luta, o seu valor. Fortalecer o folclore, mas também engajar a juventude nestas linguagens, é um mecanismo eficiente que entrega bons resultados.
Entre os projetos sociais do Flor Ribeirinha, alguns deles são, o Semente Ribeirinha, que acolhe crianças de 4 a 14 anos, o Flor da Idade, para pessoas a partir de 60 anos, além da formação de jovens e adultos, com dançarinos e outros profissionais a partir dos 17 anos. O grupo também conta com integrantes do corpo musical. As crianças, jovens e pessoas da melhor idade que passam por essa rede, carregam os valores por onde vão, seja para as escolas, outras pessoas da família, colegas de trabalho ou de vida. A mensagem sempre segue reverberando.
“Quando uma geração tem essa consciência identitária, isso a fortalece em vários aspectos, principalmente nos psicológicos. Elas percebem o quanto podem se transformar um ser humano melhor dentro de casa, com os amigos, colegas. também há a importância das habilidades trabalhadas com as atividades físicas“, acrescenta Avinner.
Cadeia produtiva e os próximos passos
Entre alunos, dançarinos, músicos e outros profissionais, a média é de 300 pessoas envolvidas diretamente no grupo Flor Ribeirinha. Além da importância cultural, é preciso destacar que o que se aprende entre as aulas, workshops e outras iniciativas, também vira forma de renda, com novos grupos de dança, qualificações e trocas criativas, que gera ainda mais empreendedorismo, qualificação, divulgação das comunidades tradicionais e os produtos que elas também produzem. “A cultura dialoga com todos os setores. Compreender isso é muito importante para que as pessoas realmente a valorizem“, finaliza o diretor artístico.
Em 2024, durante o mês de julho, o Flor Ribeirinha completa 31 anos de trajetória. No dia 28, em comemoração a esta data, haverá uma celebração no Quintal da Domingas, este evento se chama Bença Vó. Em agosto, Avinner também revela o lançamento do livro que conta a história de vida da Dona Domingas, sua avó, escrita por ele e com coautoria de Thereza Martha Presotti. Em setembro, o grupo viaja para o evento Anel de Ouro, que acontece em Moscou, capital da Rússia. O Flor Ribeirinha deve representar, nesta oportunidade, a América Latina.